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Augusto Boal

A Estética do Oprimido: memória política e pedagogia de um laboratório poético

08.04.2022

Brasil

por Cristina Ribas

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A escola que o espaço de improvisação cria é também a da subjetividade, de como se vive, o que se sente, como se expressa sobre o que se vive e o que se precisa transformar, de forma uma vida sem opressões possa ser vivida.

Oficina de Teatro do Oprimido em Paris (1975). Cortesia: Acervo Cedoc/Funarte.

Não nascemos atores, mas nascemos com o potencial do teatro. Nas bases do Teatro do Oprimido todos podemos nos tornar atores de um teatro como laboratório sensível e político, como aquisição de capacidade expressiva e comunicativa, como troca de energia e de vida. Com esta forma de fazer teatro, Augusto Boal conceitualizou um “espaço estético” no qual podem insurgir forças expressivas, seja por gestos, sons, enunciados, texturas, luz ou objetos: o teatro como laboratório estético e político. A composição desses animismos, discursos e cenas são também uma dobra da realidade social, econômica e política sobre a qual se busca incidir, e transformar.

O TO construiu uma crítica à sociedade de classes imposta no desenvolvimento do capitalismo (produzindo classes de explorados e de exploradores), assim como faz uma crítica ao estado e suas instituições. Para Boal, as “pessoas do povo [são] inspiração e destino” para o teatro, para os atores (1988, p. 197). Na entrada de um teatro onde acontece uma apresentação de Teatro do Oprimido lê-se: “Ultrapassando esse limite você estará se tornando um protagonista”. O cartaz, de uma peça de Teatro Fórum1, sinalizava que ao entrar no teatro você poderia ser convidado para integrar a performance – literalmente subindo no palco, e apresentando outro desfecho para o que acontece ao protagonista. Mas a participação proposta pelo Teatro do Oprimido (TO) vai além de uma integração eventual. Na história das invenções do TO encontramos as centelhas de um teatro como processo sempre aberto de formação, de uma pedagogia radical, no qual a condição de público passivo é transformada: nele, espectadores se tornam espect-atores. Literalmente, espectadores se tornam atores. Trata-se, portanto, de um teatro que é sua própria escola. Um teatro que estetiza o espaço, que tensiona realidade e representação, e que se apresenta como ferramenta urgente num presente que demanda movimentos transformadores.

O Teatro do Oprimido é um método ou uma prática teatral desenvolvida por Augusto Boal (1931-2009), um dramaturgo brasileiro que viveu entre muitos países. O método do TO segue sendo desenvolvido por multiplicadores que aprenderam com Boal e com ele conviveram, a partir do Centro de Teatro do Oprimido (CTO)2 na Lapa, no Rio de Janeiro, Brasil, mesma sede onde Boal atuava a partir do final dos anos 80; e Bárbara Santos, carioca baseada em Berlim Alemanha3. Na última década, a criação do Laboratório Internacional Madalenas trouxe o protagonismo da mulher no teatro. O teatro foi concebido como um espaço necessário para a elaboração de questões específicas das mulheres. O TO se espalhou por vários lugares do mundo, sendo praticado por diversos grupos sociais, comunidades e movimentos. Como método de ação artístico-política e ferramenta de transformação social, ele quer que os grupos possam investigar eles mesmos suas condições de vida na sociedade capitalista, mas também na riqueza da cultura. O método quer analisar as diversas formas de exploração, extrativismo e colonialismo, inaugurando a pesquisa da opressão como forma de resistência. Para investigar as opressões investe-se na agitação das energias corporais, políticas, psíquicas e expressivas daqueles que estão reunidos – de forma que um roteiro ou uma cena sejam construídas. Esse investimento de energia coletiva inaugura uma reinvenção do teatro.

História

O desenvolvimento do Teatro do Oprimido foi possível pela persistência de Boal e seus pares em desenvolver um teatro que observasse seu presente social e político, para que se pudesse inventar e intervir – e não apenas reproduzir roteiros clássicos do teatro internacional. A história do método começa com a busca de uma dramaturgia brasileira no Teatro de Arena, na cidade de São Paulo nos anos 50. Quando Boal regressa dos Estados Unidos o Arena se torna o lugar de experimentação (e urgência) de deslocar a experiência do teatro de uma experiência narrativa passiva. Partindo do teatro tradicional, cria um teatro que pudesse responder às urgências do momento. Tanto para lidar com problemas prementes, tais como racismo, xenofobia e etnofobia, como com o poder do estado. O Brasil (assim como outros países da América Latina) viviam a cristalização de movimentos conservadores, culminando em golpes militares com o controle severo da auto organização social, que foi sendo paulatinamente abolida e punida. Segundo depoimento de Flavian Boal, filho de Augusto Boal, na emergência do contexto ditatorial, que exilou Boal e milhares, o movimento estudantil e a luta armada surgiram inspirados em formas ativistas e críticas de realizar teatro.2

Oficina de Teatro do Oprimido em Paris (1975). Cortesia: Acervo Cedoc/Funarte.

Boal era ainda jovem e animava, naquele momento, um questionamento constante do teatro como instituição. Apontava que era necessário desmontar as narrativas épicas e encontrar outras formas de produzir os protagonistas. Não um herói ideal, cuja identidade já estivera na história do teatro cravada no Estado, mas um protagonista atual, popular, que pudesse emergir em uma diagramática teatral relacional e situacional – que literalmente conversasse com o público. Ainda nos anos 50, como método e como escola de pesquisa e desenvolvimento de teatro, criaram-se os Laboratórios de Interpretação e os Seminários de Dramaturgia, que se tornam referência na invenção de um teatro nacional.

Boal procurava um teatro sem máscaras e sem mágicas desconhecidas, produzindo um teatro como laboratório dele mesmo. “Não se deveria destruir a possibilidade de, em teatro, surpreender o movimento” (p. 199). Ou seja, transformar o teatro. No contexto do Teatro de Arena, em São Paulo, Boal reconheceu as “limitações estéticas da liberdade criadora”, e, trabalhando no constante mapeamento dessas limitações, e em busca de uma liberdade expressiva e ética, ele não temia destruir o teatro “de suas formas imodificáveis e imodificadas” (p. 199). Para ele, apenas dessa forma seria possível refletir sobre uma realidade em modificação. No recrudescimento da ditadura no Brasil era necessário não abandonar formas expressivas conhecidas e potentes, tais como esta, e precisava-se de poéticas contagiantes. O teatro procurava seu potencial multiplicador, ético, estético e político. A história dessas invenções constitui hoje um “arsenal” – para usar uma expressão de Boal – como uma reserva de energia para o presente, nosso presente perpetrado de fins de mundo.

Este potencial de invenção e intervenção está no roteiro de Arena Conta Zumbi, de 1964:

“O número de mortos na campanha de Palmares – que durou cerca de um século – é insignificante diante do número de mortos que se avolumam, ano a ano, na campanha incessante dos que lutam pela liberdade. Ao contar Zambi prestamos uma homenagem a todos aqueles que, através dos tempos, dignifica o ser humano, empenhados na conquista de uma terra da amizade onde o homem ajuda o homem.”

Augusto Boal (Arena Conta Zumbi, 1964)

Desenvolve-se nesse momento uma nova forma de pensar o protagonista, de onde surge o “coringa”3: um ator/atriz que narra o que acontece na peça e compartilha sua percepção com o público, este coringa reaparece depois com os jogos, como um mediador ou condutor de encontros. Nas peças de teatro, este narrador também pode ser um grupo. Em peças como Arena Conta Tiradentes ou Arena Conta Zumbi4, o grupo se utiliza do sistema coringa revezando os papéis e personagens existentes entre o elenco. Isso é uma forma de, inicialmente, coletivizar a narrativa. Boal e seus colegas percebem a importância da expressividade singular que adquirem os não-atores, e trabalha-se de forma a buscar a forma expressiva de cada um (seja ator profissional ou não). Abolindo o narrador único, cria-se uma narração em grupo, em que todos os atores são narradores, e por isso, se tornam também os protagonistas. Essa circulação dos protagonismos coloca em evidência uma experiência política coletiva e incita acabar com a separação entre público e ator-protagonista, que acontece posteriormente nas práticas coletivas de TO.

“4 – Os atores tem mil caras / fazem tudo neste conto / desde preto até branco / direitinho ponto por ponto.”

Augusto Boal (Arena Conta Zumbi, 1964).

Jogos

O TO inventou também diversas formas de coletivização, socialização e formação do teatro mesmo. Daí vem a importância dos laboratórios nos quais se possa trocar e refletir entre grupos e praticantes do TO. Em 1981, organiza-se o I Festival Internacional de Teatro do Oprimido, e em 2009 a I Conferência Internacional de Teatro do Oprimido. Boal volta ao Brasil definitivamente em 1986, após ter vivido mais de 15 anos fora do país (também por conta de exílio), instalando-se no Rio, onde inicia o plano piloto da Fábrica de Teatro Popular, que tinha como principal objetivo tornar acessível a qualquer cidadão a linguagem teatral. Nesse momento cria o Centro do Teatro do Oprimido – CTO. Ao longo de todos esses anos, foram desenvolvidos vários métodos, construindo a Árvore do TO, que compreende várias práticas e constitui a Estética do Oprimido: Teatro Imagem, Teatro Fórum, Arco-íris do desejo, Teatro Jornal, Teatro invisível, Teatro Legislativo.

Diferente de pensar o teatro como prática profissional, centrado na dramaturgia dos atores ou no roteiro pré-concebido, o TO inventaria um método que pode ser praticado por todos, investindo não diretamente na ideia de formação de atores mas na realização cênica como direito à expressividade estética, para identificar as opressões que segregam, excluem, invisibilizam, escravizam – mas também, e sobretudo, as formas de sublevação, de resistência, de persistência da vida. O método cria dispositivos para entender a forma situada da opressão, individual ou coletiva, mas também como a forma situada de opressão é gerada por um diagrama de poder macro, que atua em larga escala e reproduz formas sociais majoritariamente. Por isso faz sentido que a pesquisa sobre as opressões seja realizada pelos atores sociais mesmos, “atores de suas vidas”, e não por outros – atuando diretamente contra a hierarquia que marca posicionalidades tradicionais mesmo em espaços mais progressistas - a separação entre quem pensa e quem é pensado, quem tem e não tem agência sobre sua própria vida. Não se busca, contudo, uma mímesis da vida, nem uma cópia da vida, mas elaborar a vida e a cultura elas mesmas, pelo teatro.

"Arena conta Zumbi". Texto e direção por Augusto Boal (c. 1965). Fotografia: Derly Marques. Cortesia: Acervo Cedoc/Funarte.

Nos Jogos do TO o/a coringa se torna muito importante. O/a coringa é aquele que coordena e distribui poderes e funções, garantindo que todos tenham espaço de fala e que o processo de aprendizagem possa acontecer. Um conjunto de regras podem assegurar o funcionamento seguro de uma oficina, estabelecendo um marco ético.5 O grupo deve funcionar de forma que divertir-se, estar seguro para falar de si, sentir emoções e expressá-las sendo respeitado seja possível.

A expressividade estética do TO é desenvolvida com jogos que fazem os participantes se conhecerem, através de brincadeiras e exercícios que trabalham a cognição, a concentração, o improviso. Os jogos servem para preparar os corpos, para que os sentidos e os desejos estejam acordados, para que composições possam surgir. Os jogos são coletados de práticas e métodos teatrais de Konstantin Stanislavski (roteirista russo, 1863-1938) e Bertold Brecht (dramaturgo alemão, 1898-1956), mas também de teatro popular. Investem numa pesquisa corporal, coletiva, artística – privilegiando a improvisação no desenvolvimento do ator. E preparam o terreno para o desenvolvimento de cenas mais complexas que visam sustentar uma processualidade criativa na qual emergem os conflitos sociais, econômicos, políticos, culturais - e também raciais, sexuais, geracionais. Como processualidade estética, como teatro, não se procura representar o que acontece na vida. O método procura fazer diferir e fazer variar as narrativas de uma dada situação. Não há, portanto, uma busca de uma realidade analisada pré produzida que deverá ser reproduzida enquanto tal. O método é também, portanto, o do desvio multiplicador, de forma que se possam produzir efeitos incontroláveis.

Desvios

Ainda que o Teatro do Oprimido seja baseado em uma crítica à sociedade de classes, a imagem objetiva da opressão não é o que se procura imediatamente tão logo uma oficina de teatro acontece. Se produzem uma série de exercícios que, antes de objetificar, possam atiçar imaginários. Isso não significa reproduzir a tentativa de abolir as classes simplesmente ao dizer que elas não existem – como se faz pensar que o racismo e a etnofobia. Significa afirmar os fins do capitalismo e permitir que persistam outras formas de economia. Há no TO há um jogo constante entre objetividade e improvisação, no sentido da abertura ao que é novo e o que é necessário em um processo coletivo. O TO funciona como um espaço de pesquisa do acontecimento da vida, como Boal mesmo disse: “Teatro é uma forma de conhecimento.” Mas o espaço estético é um espaço de ficção:

“Pessoas mortas estão vivas, o passado se torna presente, o futuro é hoje, tudo é possível aqui e agora, ficção é pura realidade, e realidade é ficção.”

“Pessoas ou objetos podem coalescer ou dissolver-se, dividir ou multiplicar-se.”

“O espaço estético é tomado com a mesma plasticidade do sonho (…), no teatro podemos ter sonhos concretos.”

Augusto Boal, 1988.

Imaginação e memória fazem parte dessa composição, não só a objetividade factual da vida. Nesse sentido a escola que o espaço de improvisação cria é também a da subjetividade, de como se vive, o que se sente, como se expressa sobre o que se vive e o que se precisa transformar, de forma uma vida sem opressões possa ser vivida.

O espaço cênico do teatro, o palco, pode ser uma arena, uma quadra, uma praça. Qualquer lugar onde se possa ativar um “espaço estético”. Boal argumenta que o teatro foi criado a partir do momento em que os seres humanos começaram a olhar para si mesmos em ação. Portanto, o teatro é o "ato de realizar-se em ação". Numa pesquisa-processo analítico-criativa, onde se trabalham a intensidade de um gesto, a temporalidade de um gesto. Uma “pesquisa em ato”6. Ao evitar a discursividade (overthinking, overtalking) pode-se liberar do risco de gerar a leitura literal de uma ação, de uma cena, como se “revelasse o seu significado”. O “estímulo à ação concreta” como descreve Bárbara Santos (2018) desvia desse problema e convida a uma imersão corporal e inventiva, na qual se pode desviar de um encerramento significativo, sustentando a contradição.

"Arena conta Zumbi". Texto e direção por Augusto Boal (c. 1965). Fotografia: Derly Marques. Cortesia: Acervo Cedoc/Funarte.

Em uma oficina de TO atores e participantes podem produzir uma imagem a partir de experiências reais - de um fato, de um evento, de um conflito. Os disparadores podem ser vários. Pode-se partir de uma imagem específica (teatro imagem) na leitura das formas que criam os corpos dos participantes de uma oficina, animados por uma palavra. No modo estético do TO, outro exemplo, uma cena pode surgir a partir de um objeto, de uma música, de uma matéria de jornal. Na coleta das variabilidades, uma cena pode começar a ser construída, personagens produzidos e um conflito ou um impasse pode ser mapeado e, em seguida, improvisado. Mas uma oficina nunca é um processo linear, é preciso realizar escolhas, cortes, provocar intervenções, de forma a produzir caminhos.

Toda improvisação é uma busca, um processo de descoberta. Para que essa busca seja eficaz, a estrutura da cena a partir da qual ela se estabelece precisa ser a mais dinâmica possível.

Os caminhos de experimentação estética (e discursiva), devem construir cenas que possam deixar os problemas pulando, explícitos, afinal é dessa forma que eles estão na sociedade. No TO uma peça de teatro não deve terminar em repouso, ela deve mostrar por que caminhos “se desequilibra a sociedade”, energia percebida (e animada) por Brecht. Segundo Boal é preciso atiçar o desconforto, para que algo seja possível: “O espetáculo teatral deve ser o início da ação”. Isso também porque, o teatro, como escola de invenções, deve interferir contra os regimes totalizantes, com formas unitárias de comunicação, com regimes significantes (que também estão na arte e na cultura, como vimos antes). Boal associa essa pragmática das invenções ao acesso à linguagem, que não é igual para todos, por isso é necessário “inventar linguagem”, e colocar em cheque as línguas predominantes - assim como as formas dominantes da economia, da política, da sociedade.

O TO, como teatro em processo de laboratório e laboratório de acontecimento, afirma a potência de ser também a sua própria escola. De produzir formas pedagógicas, que seja também uma escola de formação de formas de fazer teatro. Assim se cria o teatro como escola em processo, pautada em encontros que solicitam a alegria, o engajamento e o empoderamento, valorizando a troca de energia para que a arte possa se confirmar como “um fenômeno estranhamente político”.

Bibliografia

ACT ESOL Language Resistance Theatre. London: (link: