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Como ser coro: rumo a um teatro que gera comunidade

10.11.2023

por Artur Kon

Impossível não falar aqui do maior artista que o teatro brasileiro já conheceu.
Pois José Celso Martinez Corrêa também sempre foi mais que apenas um artista: era e é grupo, multidão, coro. Sempre praticou “a beleza da vida coletiva” (como bem colocou o antropólogo Jean Tible)1 e assim nos ensinou a deixar, pelo menos às vezes, a solidão de espectador individual e entrar na cena-festa coletiva.

Dedico este texto a ele, que nos deixou enquanto eu escrevia, mas que seguirá sendo nosso norte – pois, como bem disse o José Miguel Wisnik, “não há morte que o morra”.2
E aproveito para fazer um gancho compartilhando o sentimento do filósofo Douglas Rodrigues Barros: “Hoje, com um teatro cada vez mais individualista, fica difícil não se sentir órfão ante sua morte”.3

No delicado momento político brasileiro, nosso teatro – outrora caracterizado pela enorme profusão de grupos trabalhando em processo colaborativo, de diversas formas redescobertas por cada coletivo e a cada criação – parece antes dominado pelos solos e pelas autorias individuais (inclusive de muitos artistas que faziam ou ainda fazem parte das companhias que construíam a riqueza do período anterior).4

Não é possível dar a essa tendência individualizante uma explicação única, mas parece relevante citar alguns fatores que podem estar em sua origem. Há que considerar, para começo de conversa, aspectos materiais, abrangendo tanto as condições de produção cada vez mais precarizadas (que impedem que grupos se reúnam regularmente pelo tempo que uma criação exige) quanto os orçamentos reduzidos para festivais e circulações (fazendo com que apenas as obras menos custosas sejam selecionadas).

Mas há ainda o papel de um sentimento social captado pelos artistas (a crescente dificuldade de diálogo, mas também a centralidade da urgente questão do “lugar de fala” e de novos protagonismos) e simultaneamente de forças ideológicas difíceis de escapar totalmente (a exacerbação de um individualismo narcisista, numa “guinada subjetiva” propagada cada vez mais pelo funcionamento das redes sociais, que transformam a vida de todos em um “show do Eu”).5

Os fatores listados, ademais, certamente não são tendências inevitáveis de um capitalismo abstrato, mas todos eles parte de um processo histórico concreto que, no Brasil, teve nos últimos dez anos diversos marcos importantes: desde as “Jornadas de Junho” de 2013, passando pelo Golpe parlamentar de 2016, pela eleição do neofascista Jair Bolsonaro e (por enquanto) chegando, em 2022, a sua derrota, levando Lula de volta à presidência.

CiaSenhas: Os Pálidos [Los pálidos] (2015). Foto: Elenize Dezgeniski.

Esses acontecimentos determinaram, ao mesmo tempo, a destruição política – que gerou o desmonte das políticas públicas para a Cultura tanto quanto o desfazimento dos laços sociais sempre já precários em uma república da periferia do capitalismo – e a tão difícil quanto necessária oposição a ela (não esqueçamos que esse período começa com manifestações que de modo algum podem ser reduzidas à sua deriva fascista, embora esta também deva ser reconhecida).

É essa força opositora que permitiu, também no campo do teatro, das práticas performáticas e das artes de modo mais amplo, certas insistências coletivas que me ocuparam – tanto como artista quanto como pesquisador – nessa década, e que tentarei mapear aqui. Não com o intuito de atacar ou desvalorizar de modo algum os muitos importantes trabalhos individuais que esse período produziu, mas para tentar ampliar um pouco as possibilidades do nosso olhar e da nossa ação.

A força da turba

Quando estouraram as manifestações de 2013, eu estava, junto à Cia de Teatro Acidental, coletivo em que trabalho há dezessete anos, em pleno processo de criação. A peça estreou mais de um ano depois, em dezembro de 2014, e foi decisivamente influenciada pelos rumos políticos do país, que naquele momento podíamos apenas vislumbrar forçando ao máximo nossa imaginação distópica. Já o título expressava a sensação de ansiedade em relação ao futuro: O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer.7 Numa longa mesa, sete atores encenam o que a princípio parece um debate acadêmico sobre a obra O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues – dramaturgo que, de modo sintomático, representa ao mesmo tempo o início do modernismo teatral brasileiro e o mais profundo reacionarismo imaginável (exemplar para boa parte da direita ainda hoje). Aos poucos, a trama (em que um beijo dado por um homem em outro, como gesto de misericórdia na hora da morte, é transformado pela ação conjunta de imprensa e polícia em um escândalo que destrói o protagonista) começa a contaminar a cena, e a discussão racional dá lugar ao discurso de ódio mais violento.

Cia de Teatro Acidental: O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer [Lo que realmente estás haciendo es esperar que el accidente suceda] (2014). Foto: Cacá Bernardes.

Isso não acontece, porém, por meio de diálogos dramáticos entre personagens identificáveis, mas em uma fala coral que, sem distinções nítidas entre seus membros, direciona a enunciação para a plateia. Com isso a cena materializa algo do efeito de massa identificável nas diversas encarnações históricas do fascismo, e que fazia o conservadorismo aparecer para nós, naquele momento, como uma onda ameaçadora e impossível de ser freada.8

Encontramos algo semelhante na performance “Massa ré”, criada dois anos depois, em 2016, por Elilson, jovem artista do Recife: “Um grupo de brasileiros, trajando camisas brancas com as inscrições 2016 (frente) e 1964 (costas) em preto, caminha lentamente, silenciosamente e de costas pelas ruas da cidade com as mãos espalmadas para baixo. Os pontos de início e término da caminhada são preestabelecidos em consonância a fatos históricos”.9 Aqui, a massa sai do palco, onde ainda há uma camada representacional que dá certa segurança aos artistas quanto às leituras possíveis, e abre-se para a indeterminação da recepção no espaço público, onde poderá entrar em consonância ou embate com diferentes comunidades políticas. O próprio criador questiona se essa ação “pode, predominantemente, suscitar apoio ou concordância a um golpe de estado” (de fato em curso naquele ano), dubiedade que “não me parecia necessariamente negativa”.10

Elilson: Massa Ré [Masa inversa] (2016). Foto: Francisco Costa.

A questão do artista é a que nós da Acidental também passamos a nos colocar: é possível reduzir os movimentos grupais a uma expressão do Mal, e ainda por cima a um mal nitidamente distinto de nós próprios: à turba fascista a que nós, mocinhos, nos opomos? Não é exatamente isso que a ideologia do individualismo neoliberal quer nos fazer crer?

É com essa ambiguidade que parecem lidar a artista visual Cinthia Marcelle e o cineasta Tiago Mata Machado, de Belo Horizonte, na série de vídeos “Divina violência”. Em Comunidade (2007), vemos uma fila de pessoas que, aparentemente esperando para entrar em algum evento, aos poucos começam a brigar, saindo da formação organizada e gerando uma movimentação caótica. Em O século (2011), diversos objetos são lançados a partir de fora do enquadramento, sempre do mesmo lado, vindo a cair na rua, como se estivessem sendo arremessados contra algum inimigo invisível e talvez inatingível. Finalmente, em Rua de mão única (2013), assistimos a um ir e vir de manifestantes cujos rostos cobertos, além de uma série de indícios vindos de fora do quadro (sobretudo uma luminosidade sugerindo fogo e muita fumaça), indicam que não se trata de um protesto pacífico. Nos três casos, vemos as cenas de cima, de modo que o resultado é muito mais uma coreografia coletiva do que narrativas individuais, que acabam quase apagadas. O caráter violento e massificador dessa coletividade, porém, não parece facilmente redutível a tendências fascistas, mas pulsa também justamente naquilo que resiste a elas.12

Descobrindo a vizinhança

Na busca de compreender melhor essa ambiguidade e sair da posição confortável de quem acusa como que de fora a turba fascista, a Cia de Teatro Acidental começou em 2016 a investigar o medo como afeto político fundante da nossa sociedade, originador do ódio abordado na peça anterior e denominador comum à direita (que parece sempre temer a violência vinda de pobres, negros e outros excluídos) e à esquerda (que, naquele momento, temia a ascensão da extrema-direita), fazendo com que todos prefiramos nos fechar em condomínios junto com nossos semelhantes, deixando do outro lado dos muros aqueles que compreendemos como Outros.13 O resultado dessa pesquisa, E o que fizemos foi ficar lá ou algo assim, estreou em janeiro de 2019, portanto no primeiro mês do governo Bolsonaro. Ali, uma reunião de condomínio – onde surgia como problema central a ser discutido a presença de “estranhos” indeterminados e incômodos – se transformava gradualmente em um filme de zumbis, revelando a fragilidade dos laços sociais e ao mesmo tempo seu caráter paranóico.

Cia de Teatro Acidental: E o que fizemos foi ficar lá ou algo assim [Y lo que hicimos fue quedarnos allá o algo así] (2019). Foto: Cacá Bernardes.

Também na peça Os pálidos, estreado em 2015 pela CiaSenhas, de Curitiba, o clima é de fim de festa – as figuras “de uma burguesia presa em si mesma, enredada pelo consumo e rouca de protestar nas redes sociais”, parecem todas bêbadas, ou tontas por algum outro motivo, sugerindo “estados de inércia, paralisação e anestesia”14 – e o foco é em certa decadência e estranheza.15 Mas aqui o tema da coabitação se manifesta em uma cena site-specific e relacional: somos convidados a entrar no espaço de uma casa, dividida em dois ambientes diferentes (“sugerindo todo tipo de cisão”, diz a companhia), onde veremos de perto essas pessoas que começam a peça agitando diante dos nossos olhos patéticas bandeirinhas brancas (um pedido de paz?) e dizendo que “Não somos quem parecemos ser, somos muito mais do que isso”.

A cumplicidade proposta e ao mesmo tempo posta em questão desafia o espectador a questionar suas próprias identificações e filiações: “Nós somos incríveis, cultos, simpáticos, higiênicos, esnobes, covardes, depravados, não somos?” Trata-se, como diz a crítica e pesquisadora Luciana Romagnolli,16 de “manipula[r] explicitamente nossas fraquezas” e “instaura[r] um campo de experiência no qual possam germinar questões como: O que nos é comum? O que nos une ou para que nos unimos?”

Da necessidade de reagrupar

Esse movimento centrípeto foi radicalizado ainda mais em E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, que estreou e cumpriu temporada no final de 2022 (justamente na reta final das eleições presidenciais). Dessa vez, porém, ao invés de buscar aquilo que era semelhante entre direita e esquerda (em certo contexto de classe-média), investigávamos aquilo que era específico ao nosso campo, a partir de um embate com a tradição do teatro político encarnada na figura de Bertolt Brecht e sua peça (coral) A decisão. Se nessa obra tão polêmica quanto já canônica um coro do Partido investigava e celebrava as condições para a vitória da Revolução (sobretudo a superação – não sem certa crueldade necessária – de posições ingênua e subjetivamente esquerdistas, mais morais do que políticas), nossa peça refletia sobre o fracasso, a ausência de qualquer perspectiva de transformação radical da sociedade, e a redução dos posicionamentos da esquerda a mero moralismo culpado.17

Também nos interessava a teoria e prática da “peça de aprendizagem” (Lehrstück), compreendida não como um teatro proselitista, mas pelo contrário como um processo aberto de estudo coletivo, um teatro sem ensaio e sem plateia, feito a partir de uma dramaturgia, mas sem precisar se submeter ou limitar ao que ela já contém. Daí surgiu uma série de propostas de interação com e inclusão do público na coletividade reflexiva instaurada em cena (mas sempre partindo do pressuposto de que essa relação não poderia ser bem-sucedida, afirmativa, mas sempre precária e colocada em questão), bem como o convite para que Maria Tendlau, especialista no assunto, dirigisse a peça.18

Essa autorreflexão no e do coletivo também é o impulso da peça Nós, que o Grupo Galpão estreou em 2016 em Belo Horizonte. A estrutura é simples: “Sete pessoas se reúnem para uma última sopa e, enquanto a preparam, expõem angústias, medos, sensações, experiências, cobranças do mundo fora dali e que repercutem diretamente na relação entre eles”, isto é, nas muitas vezes “conflituosas relações entre os integrantes” que apontam “para a complexidade de suas trajetórias (nós) em uma prática coletiva”.19 A ênfase aqui parece ser os próprios funcionamentos do teatro de grupo brasileiro, com suas dificuldades, precariedades, mas também suas insistências esperançosas.

Patrick Pessoa propõe “pensar o espetáculo como uma sessão de análise de grupo [...] – no caso, do sujeito chamado ‘Grupo Galpão’”, esse que poderia ser considerado um “arquigrupo de teatro” no contexto brasileiro – numa “tentativa de recuperar aquilo que estava ali na origem”, aquilo que faz com que nos juntemos para criar coletivamente.20 Mas, se o espetáculo é menos explicitamente político que o da Acidental, de modo algum deixa de lado essa dimensão: suas cenas “partem da gestualidade micropolítica para projetar a macropolítica brasileira, quando articula e se ampara no vínculo estreito que se estabelece entre aquele universo aparentemente particular e as urgências do lá fora”.21

Em ambos os casos, trata-se “menos de unificar grupos do que de aprendermos a remendar os retalhos de uma sociedade fraturada usando a esquerda como laboratório”, como propuseram os pensadores Edimilson Paraná e Gabriel Tupinambá.22 Pois “pode ser que se revele necessário – como uma etapa provisória, mas importante na reinvenção dos arranjos das esquerdas – a invenção de espaços coletivos em que possamos exercitar a formulação dos nossos próprios problemas”. E não seria “irônico descobrir que ‘comunismo’ é um nome que vai ganhar realidade histórica no século XXI primeiro como um método de tratamento das contradições “não-antagônicas” dentro da esquerda, antes de se constituir como uma estratégia de transformação da realidade como um todo”?

Por outras comunidades

Tendo finalizado a “Trilogia dos Afetos Políticos”, projeto que nos ocupou por dez anos, agora a Cia de Teatro Acidental começa uma nova etapa, pesquisando justamente os “Modos de ser muitos”, isto é, as maneiras pelas quais nos agrupamos e permanecemos juntos, convivendo e colaborando por mais da metade das nossas vidas. Um dos pontos principais dessa investigação é a percepção das diferenças internas, num contexto em que as identidades tomaram a frente do debate e da produção teatral. Assim, se não somos um grupo de teatro negro, nem um grupo de teatro gay ou trans, nem um grupo de mulheres, nem por isso somos um coletivo branco, cis, hétero, masculino. Como lidar com nossa multiplicidade e ao mesmo tempo com aquilo que nos une, ampliando as possibilidades daquilo que entendemos por comunidade?

Ainda não há resposta para essa questão, que nos guiará nos próximos anos. Porém, já é possível vislumbrar um necessário primeiro passo: observar o modo como essas subjetividades dissidentes ou contrahegemônicas têm superado a tentação do protagonismo individual e experimentado jeitos de estar junto em cena.

Em Eu tenho uma história que se parece com a minha (2022), Tetembua Dandara convida o público para uma festa onde conheceremos sua família, e particularmente as mulheres dessa família, três gerações com um histórico de ativismo no movimento negro. “O que a gente fez foi construir um espaço para que o público desfrute de um tempo na presença dessas mulheres”, explica a artista paulistana, que apesar de ter trabalhado por anos no teatro agora se afasta de seus procedimentos mais habituais: “É muito mais sobre compartilhar o tempo do que sobre assistir a algo”.23 Ela, sua irmã Mafoane, sua mãe Neuza e sua avó Dirce (em cena aos 95 anos) compartilham conosco não apenas o espaço (incluindo uma cozinha e uma piscina de bolinhas para as crianças, que também são bem-vindas), mas muita comida – feita em cena por Tetembua – e muitas histórias. Mas a ideia também é que essas histórias não necessariamente correspondam àquelas que se costuma ver no teatro negro que se tornou mais comum: “A branquitude coloca os corpos negros em alguns lugares específicos. Às vezes eu apresento o meu projeto e me perguntam: é sobre samba, sobre candomblé? Minha avó não é do samba, não é do candomblé, não é da umbanda. Ela não é menos negra por causa disso.” Assim, a performance torna possível “pensar e discutir a negritude para além dos estereótipos. Somos muito maiores que os lugares que querem nos limitar. Não precisamos contar só histórias de sofrimento, porque não celebrar essas mulheres em vida?”.24 Ou poderíamos dizer: busca fazer comunidade para além da identidade comum já disponível numa produção majoritária.

Janaína Leite: História do olho [Historia del ojo] (2022). Foto: Guto Muniz.

Não é algo assim que também orienta Mato seco em chamas (2022)? Parceria do cineasta brasiliense Adirley Queirós com a portuguesa Joana Pimenta, o filme se passa na comunidade de Sol Nascente, em Ceilândia, onde acompanhamos a desobediente resistência política de três mulheres periféricas (e mais muitas outras lésbicas ex-presidiárias que se reúnem em torno delas) em um futuro distópico tomado por milícias neonazistas e bastante parecido com o presente – até porque a ficção é o tempo todo contaminada pela realidade usada para construí-la, flertando com o documentário. Essa combinação, revelando traços de criação colaborativa (muito mais rara no cinema do que no teatro), nos permite “ver corpos que resistem coletivamente às opressões do cotidiano e às durezas da precariedade e conseguem momentos de alegria, diversão e autoafirmação”.

Já História do olho, peça dirigida no mesmo ano pela paulistana Janaína Leite, parte de relatos pessoais (continuando de certo modo uma pesquisa da autora sobre as possibilidades do teatro documentário, mas que a tem levado muito além dos limites estritos dessa forma) de diversos atores (e “não-atores”) diferentes, aliás cuja diversidade é o traço primordial. O tema que une esses depoimentos, tirado do livro de Georges Bataille trazido para a cena junto com esse material pessoal, é a sexualidade, e sobretudo práticas sexuais dissidentes, até mesmo como atividade profissional.25

Mas, se inicialmente o elenco pode parecer estar ali para desempenhar o papel de “especialistas” nesse assunto,26 o desenrolar das histórias e o confronto com a obra literária vão cada vez mais revelando o sexo como lugar por excelência de um não-saber, condição fundamental para o desejo que impulsiona a todos nós (e muito valorizado por Bataille, para quem “o conhecimento nos escraviza” e “demanda certa estabilidade das coisas conhecidas”, limitando-nos a um domínio “onde nos reconhecemos” e excluímos qualquer imprevisibilidade)27.

Cada vez mais o próprio público se vê convidado a compartilhar daquela discussão, seja com suas próprias histórias, seja com sua ação, ou apenas com seu olhar já não distanciado nem ingênuo. Assim, o elenco múltiplo, e com ele nós mesmos, acabamos fazendo parte de uma espécie de coro. Não porque tenhamos alguma identidade em comum ou porque concordemos em algum posicionamento sobre a realidade. Mas porque nos permitimos não saber juntos. [28]

Afinal, esse não-saber é ponto de partida para qualquer “mundo comum” a ser construído hoje, segundo a filósofa espanhola Marina Garcés: se estamos hoje numa situação desesperadora em que já “não sabemos dizer ‘nós” – pois “entre o eu e o todo não sabemos onde situar nossos vínculos, nossas cumplicidades, nossas alianças e solidariedades” – é justamente esse “expor-nos ao que não sabemos” que pode promover união hoje, criando “um nós que não necessita de identidades, um nós composto de múltiplos anonimatos, de palavras que nem sempre dizem o que queremos e de corpos que fazem coisas que não sabemos dizer”.29