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Especular pactos sobre o comum

Cada uma destas experiências costura devires e táticas que perturbam os fundamentos que edificam nossas idéias de Estado, comunidade e ação política. Nesse sentido, compreendemos estes processos como especulativos justamente porque eles extrapolam um presente dado por atrofiado.

Diante da conjuntura de crises dos modos de viver ocidentais, tanto em suas instâncias de poder, governança e representação quanto em seus próprios fundamentos ontológicos e epistemológicos, indagamos por formas de repensar a categoria de pacto social consolidada pela teoria política moderna, inspirados em modos contra-hegemônicos de organização comunitária.

Imaginar e atualizar pactos sociais por meio de metodologias produtoras do comum é uma tarefa que não somente põe em xeque a organização institucional do presente, seus mitos fundacionais, formas de manutenção e naturalização; mas que também corporifica a experimentação do que entendemos como fazeres instituintes – formas sociais capazes de reinventar coletividades. Estas experiências propõem estruturas que consolidam horizontes de autodeterminação emergentes e, ao mesmo tempo, processos especulativos.

Partimos do pacto social como campo de experimentação simbólica para observar os modos pelos quais o colonialismo utilizou a especulação como sustentáculo das instituições contemporâneas. Ao mesmo tempo, buscamos pensar nos modos de incidir sobre esse campo a partir de práticas concretas, nomeadamente o quilombo urbano Aparelha Luzia, as articulações comunitárias da Teia dos Povos e a confecção dos Mantos Tupinambás.

Cada uma destas experiências costura devires e táticas que perturbam os fundamentos que edificam nossas idéias de Estado, comunidade e ação política. Nesse sentido, compreendemos estes processos como especulativos justamente porque eles extrapolam um presente dado por atrofiado. Especular pactos situados sobre o comum, assim, é também uma saída, uma fuga do pacto fabricado por colonizadores. Uma fuga para fora e para dentro, que compõe um tecido cosmopolítico em curso.

A fundação jurídico-política da sociedade moderna vem sendo compreendida através das lentes teóricas do contrato social. Por meio de uma narrativa atemporal, o imaginário teórico contratual desenha as genealogias do Estado moderno como produto das narrativas eurocêntricas do mundo. Thomas Hobbes, considerado um marco contratualista, argumentava em 1651 que o estado de natureza (descrito como "guerra de todos contra todos") seria responsável por produzir o medo generalizado e a consequente necessidade de um pacto social. Tal contrato representaria a ruptura e o desenvolvimento linear da forma de sociabilidade descrita como ‘primitiva’ (estado de natureza) para uma forma de sociabilidade considerada ‘civilizada’ (sociedade contratual ou civil-política). Estes têm sido, ainda hoje, os pilares onto-epistemológicos da fabricação do Estado sedimentado nas noções de soberania e de vontade comum.

Integrantes das comunidades chegam em caminhada para a I Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos, em 2012. Fotografía: Iago Aquino/Agência EQV. Cortesía: Teia dos Povos.

A arquitetura de poder forjada pelo contrato social não deve ser percebida como uma mera especulação fictícia. Pelo contrário, este imaginário eurocentrado constitui o alicerce epistêmico da teorização colonial, liberal e constitucional do poder político moderno, produtor de novas gramáticas jurídico-políticas. Nesse sentido, é importante compreender o pacto social como o próprio terreno para a emergência dos princípios universais de igualdade, liberdade e fraternidade, produzido sobretudo nos séculos XVII e XVIII em espacialidades ocidentais, em um período significativo de lutas contracoloniais nas territorialidades hoje nomeadas como América Latina. Seria mera coincidência que o cânone teórico do contrato social tivesse sido produzido após a invasão colonial perpetrada na virada do século XV para o século XVI? Como falar em pacto no contexto colonial, no qual um terço à metade da população era reconhecida enquanto propriedade e submetida à escravidão no Brasil? Por quem teriam sido assinados os contratos sociais dos Estados modernos na Améfrica Ladina?1

Ao situar o marco colonial de fabricação e universalização do Estado moderno, buscamos mapear práticas que vêm, de forma contínua, disputando, (re)ocupando e (re)inventando espacialidades comunais e formas de sociabilidade contracoloniais. O movimento aqui intencionado diverge do uso e da definição colonial de cartografias voltadas a medir, representar e controlar corpos e territórios. Por meio de uma geografia engajada, o mapeamento das arquiteturas insurgentes de aquilombamento e aldeamento se alia a territorialidades e espacialidades políticas que sabotam o contrato social-colonial, estabelecendo outras pedagogias e tecnologias comunitárias.

Aparelha Luzia, um Quilombo Urbano

Fundada em abril de 2016 pela curadora, pedagoga e ativista Erica Malunguinho, a Aparelha Luzia constitui um espaço de mediação, criação e circulação de artes negras e narrativas anticoloniais. Localizada na região da Barra Funda, na cidade de São Paulo, a Aparelha Luzia é reconhecida enquanto quilombo urbano, em um processo ancestral e Afro-diaspórico de “reintegração de posse”. Nas palavras de Malunguinho, o espaço “é o resultado de uma historicidade negra muito antes de mim, que remete aos povos Malês, o Teatro Experimental do Negro, a recente Ocupação Preta da Funarte, o quilombo dos Palmares, o Movimento Negro Unificado, os maracatus... Acredito que o sentimento que nos faz estar tão bem aqui diz respeito às nossas memórias e ancestralidade”2.

“Aparelha” reescreve no feminino o termo “aparelho” utilizado pelas mobilizações de esquerda durante o período ditatorial civil-militar para designar um lugar de encontro, articulação e resistência. Já “Luzia” reativa no presente a memória do primeiro fóssil encontrado nas terras que hoje entendemos como Brasil, o fóssil de uma mulher apelidada pela ciência de Luzia. “Luzia é negra e esteve caminhante sobre o território nomeado por Minas Gerais. Luzia também é quilombo. De mulheres. E também reluz, luzia, lumia”, explica Erica3. A história do quilombo e os seus desdobramentos no presente configuram chave de leitura crucial das propostas estéticas e políticas desenvolvidas na e pela Aparelha.

A noção de quilombo demanda uma articulação complexa e porosa, que envolve toda a sua dimensão performativa: física e simbólica, poética e política, histórica e atual, de resistência e de re-existência.

“Começando os trabalhos naqui” (2022). Cortesía: Aparelha Luzia.

Historicamente, o quilombo emerge no período da “colonização afro-pindorâmica”, conforme explica o filósofo quilombola Antonio Bispo dos Santos. “Pindorama” ou “Terra das Palmeiras” era como os povos de origem Tupi nomeavam a espacialidade que viria a ser conhecida como Brasil4.

Durante o período colonial, as comunidades designadas como quilombo ou mocambo eram compostas principalmente por pessoas Afro-diaspóricas, além de pessoas indígenas e alguns desertores brancos. Seguimos Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento ao compreender o quilombo enquanto um movimento contínuo de resistência manifestado através da fuga, da contestação e da reorganização da ordem imposta5. Isto é, a formação de tais comunidades se materializa através da luta anticolonial e da necessidade de experimentar outras formas de viver juntes. Contudo, muito além da narrativa de guerra contra a ordem oficial e da ficção do contrato social, o quilombo diz respeito à memória viva, ao corpo-conhecimento, à tecnologia continuamente ativada e reinventada nos corpos e territórios. Essas práticas de novos imaginários de convivialidade se territorializam em associações, terreiros, afochés, escolas de samba, gafieiras, favelas, etc.

A historiadora e poeta Beatriz Nascimento denomina tal gesto inventivo de re-existência como “paz quilombola”6. “O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. E também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias da destruição”7.

O quilombo se territorializa enquanto espaço físico, assim como enquanto território existencial, poético, político e pedagógico. Em um mundo anti-negro, a Aparelha Luzia aquilomba e oferece um espaço de sociabilidade e afetividade no qual o protagonismo negro é central.

Por meio de um posicionamento político e estético, o ilê propicia variados e frequentes encontros políticos, festivos, pedagógicos, gastronômicos, artísticos e musicais. Como invoca Malunguinho, a Aparelha é um território de "artivismo pela estética, pelo discurso […] pelos saberes vivenciados a partir das heterogêneas experiências corpoculturais negras"8.

A Teia dos Povos, as sementes crioulas e a construção de soberania nos territórios

A Teia dos Povos se define como uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas, que procura construir uma aliança de luta Preta, Indígena e Popular contrária ao latifúndio e desatrelada das instituições do Estado. A Teia se organiza em núcleos de base e movimentos sociais aliados, em uma rede de atuação conjunta em diferentes localidades do Brasil. A luta pela organização das condições de produção de existência nos territórios se orienta pela soberania alimentar e por sua relação com as demais soberanias territoriais, como a hídrica, a energética e a pedagógica9.

A disputa pelos sentidos da terra extrapola a compreensão de sua materialidade como meio de produção para considerá-la como a ambiência em que a própria vida emerge, de maneira contínua, e onde a retomada se dá nos modos de relação com o território. São três os princípios fundantes da Teia, reafirmados como horizonte comum:

(1) "Terra e alimento como princípio filosófico e de vida, que se constrói através da solidariedade irrestrita aos movimentos pela defesa da territorialidade, tendo como instrumento a pedagogia do exemplo";

(2) "O trabalho e o estudo para liberdade que possibilite a construção de um novo modo de vida, desconstruindo a herança dos modelos capitalista, racista e patriarcal";

e (3) "Reafirmar o olhar ancestral na edificação de um novo tempo, contextualizado à nossa forma"10.

I Encontro Nacional da Teia dos Povos, 6 de maio de 2022. Assentamento Terra Vista, Arataca (BA). Fotografía: Alass Derivas. Cortesía: Teia dos Povos.

Os passos para uma vinculação transdisciplinar e intergeracional nos trabalhos necessários aos cuidados e à defesa do território se orientam pelos caminhos da emancipação coletiva. Seus fundamentos são os saberes ancestrais praticados em formas de cultivo tradicionais e agroecológicas, materializadas nas sementes crioulas: sementes desenvolvidas e mantidas por povos indígenas, quilombolas, agricultores e camponeses nas Américas, geralmente com grande diversidade genética, adaptadas às especificidades climáticas de suas regiões e cultivadas segundo as histórias de suas comunidades.

Desde os anos 1960, o uso de agrotóxicos, insumos industriais e sementes corporativas "melhoradas" mina a saúde dos corpos e a fertilidade dos solos, erodindo a agrobiodiversidade e a agricultura familiar, uma vez que tais sementes não podem ser reproduzidas. A livre circulação de sementes é comprometida, à medida que a biopirataria se confunde com a propriedade intelectual sobre as variedades alimentícias. Diante de renovados métodos de expropriação da vida, a potência das sementes nativas se presentifica na continuidade de espécies e na subsistência de comunidades e seus fazeres. As estratégias de manejo da agrobiodiversidade envolvem o estabelecimento de redes e bancos de sementes, a recuperação de espécies antigas, a diversificação de plantios e a disseminação de conhecimentos tradicionais, reinstituindo formas de autonomia tecnológica e econômica.

As experiências de organização da Teia dos Povos mobilizam estruturas comunais alternativas às instituições modernas e coloniais, muitas delas anteriores à implementação do Estado nação. Tomar as sementes crioulas, ou sementes da paixão, como são chamadas na Paraíba, como fundamentos políticos de outro devires comunitários é compreender que estas "são símbolos da vida em abundância, heranças deixadas pelos antepassados, cuidadas na atualidade para que as futuras gerações continuem tendo acesso a esse importante bem"11. Para Mestre Joelson Ferreira, liderança do Movimento Sem Terra, fundador e conselheiro da Teia, a emancipação dos povos em luta implica a organização das próprias comunidades na regeneração de seus biomas e modos de vida, construindo dignidade a partir de e pelo território. O gesto de semear a vida por vir persiste nesses movimentos de elaboração e autogestão de tecnologias coletivas pela retomada da terra, restaurando a memória e reinstaurando a liberdade.

O Manto Tupinambá, a feitura e a descolonização do céu

O Manto Tupinambá é um elemento ritual que aparece nos registros dos colonizadores franceses e portugueses sobre o território Pindorama, associado diretamente aos rituais antropofágicos. Feita majoritariamente de penas vermelhas do pássaro Guará, a vestimenta cobre o corpo e a cabeça. Diversos colonizadores europeus levaram mantos para seu continente, transformando-o em indumentária para a aristocracia e objeto de gabinetes de curiosidades. Recentemente, foram identificados onze Mantos Tupinambás roubados em Paris, Bruxelas, Basileia, Milão e Florença, transportados em diferentes momentos entre os séculos XVI a XVIII. Exilados, os mantos permaneceram nos museus europeus até o ano 2000, quando um dos mantos atualmente localizado no Nationalmuseet, em Copenhague (Dinamarca) foi trazido para uma exposição sobre a "Mostra do Redescobrimento" em São Paulo (Brasil). Lá, ele foi visto por Nivalda Amaral de Jesus e Aloísio Cunha Silva, lideranças da comunidade Tupinambá de Olivença, na Bahia. Ali teve início um frustrado processo de restituição.

Lívia Melzi, “Quai Branly, Chapitre I du projet Étude pour un monument Tupinambá” (2022). Cortesía: Lívia Melzi.

Envidraçados e engavetados, com acesso restrito e carregado de burocracias, os mantos permanecem em exílio. As vestimentas e seus locais de armazenamento e exposição foram registrados no trabalho da artista Lívia Melzi12, junto a uma pesquisa extensa sobre seus percursos, sua documentação e seus modos de conservação. Explorando o dispositivo museístico enquanto gestor de poder do objeto, seja no campo do direito à imagem ou da manipulação do seu capital manático, encontramos o modo como certa episteme lida com um passado que não é seu e que toma ele para si. No entanto, a confecção do manto narra outros processos de demarcação. Glicéria Tupinambá, artista, ativista e pesquisadora, nos conta que o manto é uma “ampliação do território” indígena na Europa: “O Pindorama chegou ao velho mundo; não é só o velho mundo que ocupou o novo mundo”. Ao levarem embora diferentes objetos rituais, pessoas e quadros, demarcaram o território brasileiro, mas, ao mesmo tempo, fizeram com que o próprio território europeu fosse ocupado.

Lívia Melzi, Glicéria Tupinambá e Léo Eloy: “Auto Retrato I” (2022). Cortesía: Ana Luiza Braga, Juliana M. Streva y Lior Zisman Zalis.

Os mantos articulam outros modos de ser-fazer. “Apesar do vidro que lhes tira o oxigênio”, escreve Edimilson de Almeida Pereira no poema De volta ao Sol, “o vermelho sangue do guará e o azul oceano da araruna segredam algo que excede o museu nacional de copenhague”. Neste poema, que compõe o catálogo da exposição Kwá Yepé Turusú Yuiri Assojaba Tupinambá13 (A grande volta do manto tupinambá), encontramos a incapacidade destas instituições de lidarem com o excesso da materialidade dos mantos: sua própria condição de ser.

Apesar da luta frustrada por sua restituição, outro movimento começou a ser desdobrado: a confecção de um novo manto por Glicéria Tupinambá. Através de conversas com as mulheres de sua família, com seu pai, uma visita ao manto encarcerado no museu de Paris, imagens e documentações antigas e conversas com encantados que visitam seus sonhos, o processo de criação de novos mantos foi se efetivando. Ao final, quatro mantos foram criados. A história da sua relação com o manto e o processo de confecção, narrado por ela em diferentes momentos14, tecem os fios de um processo importante de restituição e instituição.

Os novos mantos são diferentes dos antigos. “Esse manto não é uma cópia do outro, uma réplica. Não é. Esse é o Manto Tupinambá, ele é o manto do território, foi feito com as coisas do próprio território e tem uma energia do próprio território”15, escreve.

A memória, sabemos, não é a repetição do passado, mas a sua retomada diferencial em um presente específico. Essa atualização diferencial permite articular o que foi, o que é e o que será. Nesta confecção, o manto é feito junto com a memória de uma comunidade.

Mais que um objeto, “ele é uma entidade, uma personalidade”; como nos conta Glicéria, ele "ensinou a ser feito”. Junto com sua feitura, aparece a instituição e o ritual. O manto está, na verdade, "construindo um ritual”. Não apenas porque o manto era utilizado em rituais Tupinambás, mas porque ele está revitalizando e retomando um processo cosmológico. Para Glicéria, “o que provoca hoje, nesse pensamento da feitura do manto, entre o passado e o presente que nos ensina é um pouco disso, de falar do cosmos, da nossa cosmovisão, das nossas cosmogonias, do que nos leva… e as pessoas falam muito dessa ancestralidade: e que ancestralidade é essa? Como perceber o que ela nos ensina, como entender ela, qual o caminho que está nos levando?”. Uma forma, em suas palavras, de “descolonizar o céu”.

A feitura é fundacional, instituinte. Fazer é fazer o mundo. Na reflexão aqui proposta, encontramos na recente mobilização em torno do Manto Tupinambá uma trama feita de criação, memória e encante. O receituário do fazer encontra sua substância na memória de muitas, na visão de outras, nos sonhos de algumas e na fabulação especulativa orientada por encantados. Na história da feitura dos mantos, aparece a criação de uma comunidade que reimagina seus artefatos e retoma para si sua materialidade de direito: a fabricação torna-se o fundamento.

As experiências singulares de organização da Aparelha Luzia, da Teia dos Povos e dos processos de confecção dos Mantos Tupinambás, em suas complexidades e tecnologias próprias, constituem horizontes pedagógicos que restituem modos de vida contracoloniais e desenham suas metodologias de fuga e fazeres instituintes. Com este mapeamento, buscamos mobilizar práticas coletivas que atualizam memórias e abrem caminhos para aquilo que aqui tratamos como “especular pactos sobre o comum”. Estas experiências nos levam a imaginar politicamente outros possíveis, nas formas mais radicalmente diversas de performar e construir comunidades e territórios.