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Celeida Tostes

A pedagogia radical de Celeida Tostes

16.10.2023

por Cristiana Tejo

O caráter emancipatório, dialógico e experimental da pedagogia de Celeida Tostes e seu entrelaçamento com sua prática artística segue sendo um dos exemplos mais radicais de educação artística no Brasil. [...] não buscava inculcar nos educandos padrões estéticos, mas contribuir para que cada um encontrasse sua linguagem num processo de autorreflexão e experimentação.

Quando em 1950, Celeida Tostes (1929, Rio de Janeiro – 1995, Rio de Janeiro-RJ) inicia o curso seriado de Gravura na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, então capital do país, o Brasil vivia um momento de expansão institucional do campo das artes visuais a partir da instalação do Museu de Arte de São Paulo (1947), Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948) e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1948) e do surgimento de colunas de jornais e revistas dedicadas às artes1. Também em 1948, era fundada por Augusto Rodrigues a Escolinha de Arte do Brasil2, que se voltava para a educação artística de crianças e a formação de arte-educadores. Com a criação da Bienal de São Paulo (1951) acelerou-se o transcurso da internacionalização do meio de arte brasileiro. Houve, portanto, uma amplificação e qualificação na oferta de educação e de informações sobre arte em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Celeida Tostes: Taller de Artes del Fuego y Transformación de los Materiales, Parque Lage, Rio de Janeiro. Foto: Celso Guimarães. Projeto Celeida Tostes.

Desde os anos 1930, a gravura gozava de grande prestígio entre os intelectuais e artistas vanguardistas, sendo considerada uma expressão cultural atrelada à modernidade no Brasil3. Ao mesmo tempo, com a paulatina urbanização do país, o surgimento de uma consciência de classe e a luta por direitos trabalhistas que mobilizam artistas de todo o país, a gravura, por seu caráter democrático e de fácil comunicação acabou transformando-se no suporte predileto. No entanto, é importante salientar que a gravura catalisou vários interesses: do expressionismo, à figuração de origem popular (atrelada ao Nordeste), passando pela abstração informal e as experimentações concretistas e neoconcretistas. No início dos anos 1950, Clubes de Gravura já estavam espalhados por todas as regiões do país. Na ENBA, Celeida estuda gravura em metal com Oswaldo Goeldi, um dos maiores expoentes da gravura brasileira, e desenvolve uma gravura figurativa de cunho expressivo com a utilização de poucas cores. Sua participação nas aulas de Goeldi lhe rendeu um convite para participar da exposição Gravura Brasileira nos Países do Leste Europeu, em 1955. Dedica-se a gravura até 1959.

A educação já desponta como interesse concomitante da artista recém-formada em artes que ingressa, em 1956, no Curso de Atividades Artísticas para Professores de Jardim de Infância e Curso Primário promovido pela Escolinha de Arte do Brasil. Seu aperfeiçoamento pedagógico continua no curso de Professorado de Desenho, com formação em Pintura, Arte da Publicidade e do Livro e Desenho Técnico, na Escola Nacional de Belas Artes e na Escola de Filosofia, licenciando-se em Desenho, em 19574. No ano seguinte, recebe uma bolsa de estudos de um ano do “Programa do Governo dos Estados Unidos da América para Cooperação Técnica com outros Governos” para fazer especialização em Educação Secundária na Southern University, na Califórnia, e na Universidade New Mexico Highlands, no Novo México. Entre as disciplinas então cursadas figuravam History of Art – Renaissance to Present, Secondary Education, Methods and Didatics of Teaching, Evaluation of Pupil Progress, Art for Classroom Teacher e Ceramics5. No entanto, o ponto alto da estada nos Estados Unidos foi o estágio que Celeida Tostes fez com a indígena navajo Maria Martinez (1887-1981), encontro que mudaria definitivamente seu percurso artístico. Conhecida como a Oleira de San Ildefonso, Martinez era uma grande referência internacional da cerâmica nativa norte-americana. Descendente dos povos Tewa do Rio Grande Valley do Novo México, ela resgatou a técnica ancestral de cerâmica preta de seu povo a partir da observação de peças do Século XVII escavadas no início do Século XX e numa obstinada pesquisa de materiais6. Com ela, a artista carioca aprendeu o “manejo do barro, a mistura do adobe e a cerâmica indígena, e, segundo a própria Celeida, a convivência foi decisiva para a escolha do barro como matéria-prima de seu trabalho”. Durante a temporada norte-americana conheceu ainda o trabalho em cerâmica dos povos Comanche e Apache.

Ao retornar para o Brasil, em 1959, a artista já se encontrava em transição de interesse deixando aos poucos a gravura e abraçando a técnica da esmaltação em metal. Foi encontrar num país estrangeiro algo que a aproximava de suas próprias raízes: “a retomada de memórias da infância na roça, na fazenda de Campo Alegre, no Estado do Rio, pouco a pouco foi se apropriando das matérias-primas da esmaltação, e que fazem parte do universo da cerâmica”8. Diferentemente da gravura, a cerâmica não estava presente nas experimentações da vanguarda brasileira, com a exceção do uso de painéis cerâmicos que adornavam a arquitetura moderna e algumas peças em argila feitas por Bruno Giorgi e Ernesto de Fiore e em terracota por Victor Brecheret9, nos anos 1940/1950. Este suporte era associado apenas às produções de artistas populares do Vale do Jequitinhonha e do Nordeste como Mestre Vitalino10 e à estatuária indígena, além das artes decorativas e aplicadas. Francisco Brennand, artista da mesma geração de Celeida que ganhou renome nacional com grandes esculturas em cerâmicas, só iniciaria sua produção sistemática de esculturas a partir de meados dos anos 196011.

Celeida Tostes inicia, portanto, um desbravamento linguístico solitário em meio a seus pares da neo-vanguarda brasileira e vai encontrando no campo da educação um espaço em que é possível a sedimentação de seus conhecimentos e a expansão das técnicas ligadas à cerâmica, numa dinâmica em que ensinava enquanto aprendia. Não há indicações de que houve um direcionamento ideológico ou político para esta escolha, mas apenas a convergência de um interesse e um saber recém-adquiridos e as oportunidades de trabalho que foram surgindo em seu retorno ao país. Este percurso começa, em 1960, no projeto Plano para Ensino Complementar no Brasil do educador Anísio Teixeira, um programa do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação que buscava trazer de volta para a escola crianças que haviam abandonado o estudo depois do primeiro círculo de educação (os quatro primeiros anos de educação formal), reestruturar escolas e requalificar professores da rede pública de ensino de todo o país, que iam para o Rio de Janeiro como bolsistas. Em 1960, a artista passou a lecionar esmaltação em metal no Curso de Artes Industriais do INEP/MEC com uso de materiais alternativos para esses educadores como uma opção de fonte de renda para seus alunos, crianças oriundas das classes sociais mais baixas, saírem de situação de vulnerabilidade e criminalidade. Havia, portanto, uma intervenção da arte na realidade social. No processo do curso, Celeida constatou a falta de familiaridade das pessoas com uso dos seus sentidos na observação de seu cotidiano12. Esta experiência foi seminal para a construção de sua pedagogia, que partia da “recuperação da importância no exercício táctil, a consciência do próprio corpo, como forma, por dentro e por fora, e o contato da pele, o toque, a relação de dentro do corpo com o mundo exterior, através da pele”13.

Fotografía: Celso Guimarães. Projeto Celeida Tostes.

Com o Golpe Civil Militar instaurado no Brasil, em 1o de abril de 1964, os projetos que buscavam instalar medidas mais progressistas no âmbito da educação foram extintos, como o programa de Anísio Teixeira, que rumou para os Estados Unidos poucos dias depois do golpe. Apesar do fechamento, Celeida Tostes deu prosseguimento ao seu aprendizado, à construção de seu método e ao seu trabalho na educação pública de arte como professora contratada da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro, atuando tanto na educação infantil quanto na capacitação de docentes. Ao analisarmos seu currículo nota-se a ausência de exposições entre 1959 e 1979, um período em que grandes mudanças artísticas tomaram marcha pelo mundo e que no Brasil significou num salto experimental rumo à Arte Contemporânea em plena ditadura militar. Para Celeida Tostes esta revolução aconteceu no esgarçamento dos limites entre arte e educação e na criação de obras coletivas e não individuais. Em 1973, entrou na pós-graduação em Antropologia Cultural na Faculdade de Educação da UFRJ e, em 1975, com uma bolsa de estudos do British Council passou um mês na Cardiff College of Art, no País de Gales, Reino Unido, aprofundando ainda mais seus conhecimentos em cerâmica.

A pedagogia de Celeida Tostes começa de fato a tomar forma a partir do Projeto Como Somos, desenvolvido no Centro Educacional de Niterói14, da Fundação Brasileira de Educação, entre 1972 e 1975. Tratava-se de uma proposta com alunos que buscava aguçar a consciência do próprio corpo a partir do tato, ativando a relação do mundo interior com o mundo exterior por meio da pele e do toque. Num exercício em sala de aula, por exemplo, a artista e os alunos criaram esmaltes partindo de folhas de árvores e de capim associados a outros materiais num processo entre empirismo e intuição, entre observação e experimentação15. Exercícios com linhas, formas, estruturas, movimento e o espaço que ocupam os estudantes levavam-nos a acessarem suas referências pessoais e a colocarem-se em contato com sua própria sensibilidade e referência pessoal:

“Desde as primeiras atividades com crianças dentro de escolas, vi como eram desconhecidas para elas coisas muito próximas e simples. Sentir a água, observar o chão, as árvores ou seu corpo. Foram meninos e meninas de meios socioeconômicos bastante diversificados: da Penha, Mangueira, Botafogo e Vila Izabel, adolescentes uns, com sete e dez anos outros. Era como se houvesse pouco uso dos sentidos. Poucos seriam capazes de dizer alguns detalhes de sua pele, de sua mão, ou da própria sala de aula. Mais uma vez, a “distância” do que está próximo. Era a falta de exercício das possibilidades de usar”16.

Ativar os sentidos (mais principalmente o tato), explorar empiricamente e intuitivamente os materiais, conectar-se com sua subjetividade e o contexto. A experiência do Como Somos, no Centro Educacional de Niterói, sedimentou a metodologia de Celeida, segundo ela própria, e moldou suas propostas subsequentes já inseridas em instituições artísticas como a Oficina de Artes do Fogo e transformação de materiais, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (entre 1975 e 1989) e como referência para o Projeto Oficina Integrada de Cerâmica Escola de Artes/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1989.

A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, criada em 1975, no Rio de Janeiro, foi o grande laboratório de Celeida Tostes e a oportunidade de expansão e de visibilidade de sua pedagogia. A proposta da escola, desenvolvida pelo artista Rubens Gerchman (diretor da escola entre 1975 e 1979), um dos nomes mais relevantes das neovanguardas brasileiras, era tornar-se uma estrutura aberta, interdisciplinar e fomentadora da ampliação dos limites da criação e do pensamento artístico18. O convite à Celeida Tostes partiu do reconhecimento da excelência da artista e do potencial que ela levaria para a instituição: “Celeida era muito preparada, acabava de voltar da Inglaterra e eu sabia disso. O convite permitiu que ela saísse do ostracismo em que vivia como professora secundária do Estado. Na EAV ela pôde desenvolver a plenitude de sua capacidade e sensibilidade. Era uma época muito difícil. Sob a ditadura militar”19. O corpo docente inicial das aulas práticas aglutinava artistas experientes e com inserção institucional a exemplo de Helio Eichbeur, Roberto Magalhães, Eduardo Sued e Isabel Pons. Celeida era uma artista com vasta bagagem educacional, mas sem um currículo de exposições robusto.

Se do lado de fora a repressão militar limitava a livre expressão e o questionamento e buscava enquadrar as pessoas numa educação tecnicista, dentro da oficina de Artes do Fogo, a regra era descondicionar os alunos e não fornecer técnicas, fórmulas e regras estéticas. Pelo contrário, Celeida Tostes preocupava-se com a descoberta intuitiva e o processo empírico da construção de linguagens pessoais e orgânicas. Nas aulas, era estimulado um diálogo com o barro em três níveis: afetivo, cognitivo e motor. A questão central era a transformação tanto de materiais quanto de pessoas. Neste processo não apenas o barro ia para o forno, mas também os alunos, ou seja, as aulas focavam-se não apenas na produção de objetos, mas na descoberta e maturação de suas subjetividades20. Os trechos do texto escrito por Mario Margutti para a Revista GAM sobre uma tarde de atividade no curso descrevem a dinâmica metodológica:

“Um ritual de sensibilização ao ar livre, seguido por criação coletiva espontânea para finalmente, estudar empiricamente a transformação de alguns materiais pela ação do fogo. Assim foi o primeiro trabalho prático realizado em 1976 pelos alunos do curso Artes do Fogo da EAV, sob orientação de Celeida Tostes. Tudo começou com a exploração de relações sensoriais com os 4 elementos da natureza (fogo, terra, água e ar), separados e em conjunto. Depois veio a criação coletiva com o barro, as velas, as cores, as formas. Ao final, uma roda de pessoas em torno do fogo, munidas de cadinhos e tenazes, observando os efeitos da ação do calor sobre misturas aleatórias de barro, sal, bórax, tetraborato e carbonato de sódio”.

Uma das alunas do curso descreveu desta maneira a primeira parte da experiência: “Nós sentamos e procuramos sentir o ar dentro e fora do corpo, a inspiração e expiração, a ausência de ar, o seu excesso no vento. Em seguida, acendemos velas e observamos o ar na chama, o ar da gente no fogo, brincamos com as velas nas mãos, vimos o fogo se extinguindo ou aumentando. A cada passagem de uma etapa para outra (mudança de elementos), fazíamos uma parada para conscientização. Depois foram os baldes com água, o frio, o sopro na água, a lavagem dos rostos, a passagem expontânea da água para a terra, molhar o chão. A terra estava ali mesmo e, uma vez misturada com a água, é bom remexer. Aí o grupo criou uma espécie de escultura, uma “cabeça coroada” cheia de tentáculos por todos os lados, uma “aranha” que começamos imediatamente a colorir”21.

Celeida Tostes en su taller (1987). Foto: Sonia D’Almeida. Projeto Celeida Tostes.

Apesar da intensa participação na vida da EAV, o caráter expansivo da prática artística-pedagógica de Celeida levou-a para além dos muros do Parque Lage, ou seja, do meio artístico classe média do Rio de Janeiro. Em 1978, juntamente com alunas e professoras da Escola Guignard, em Minas Gerais, ela dirigiu o projeto Cerâmica Utilitária com Profissionalização, que buscava oferecer formação técnica para presidiárias. No ano seguinte, a artista encabeçou a proposta Fábrica de Azulejos e Recuperação de Memória Cultural, em São Luiz, no Maranhão. Promovido pelo Programa de Desenvolvimento Integrado de Arte Educação do Ministério da Educação e Cultura o projeto buscava restaurar as fachadas de azulejos dos casarões com mão de obra de crianças e adolescentes de baixa renda treinada no fabrico de azulejos.

No mesmo período, o Morro do Chapéu Mangueira, na Sul do Rio de Janeiro, entrou na vida de Celeida Tostes. Um encontro que geraria o projeto Formação de Centros de Cerâmica Utilitária nas Comunidades de Periferia Urbana – chamadas favelas (1980-1994) outro marco em sua biografia. A iniciativa consistiu numa profícua parceria com os moradores locais, em que se envolveram também alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a artista Anna Carolina e a historiadora Carmem Vargas. O processo que durou 5 anos englobou a escuta das histórias de vida dos habitantes do morro, grande parte formada por migrantes do Nordeste, o estudo e retirada do barro encontrado no lugar, a construção de um forno para queimar as peças e a organização de mostras e venda em feiras. Havia três intuitos principais: a expressão de memórias das participantes, a profissionalização das artistas e a geração de renda23.

Nas palavras de Vargas:

“O projeto não era fazer cestinha bonitinha, paninho de prato todo mundo igualzinho. Não: cada um criava o seu trabalho em cima daquilo que já fazia, das suas memórias ancestrais. As memórias propiciavam a construção de obras que já eram feitas na origem [no lugar de origem dos participantes]. A bonequeira fazia bonecas no município onde morava. Essa memória migrou, e foi reconstituída quando recuperada na arte – não apenas na lembrança, no abstrato. A bonequeira reconstruiu sua memória na obra de arte que era a boneca feita no Morro Chapéu Mangueira”24

Apesar das diferenças sociais dos alunos, a base da pedagogia aplicada na inciativa assemelhava-se ao trabalho desenvolvido na Escola de Artes Visuais. É o que indica afirmações como esta de Celeida: “A preocupação que o norteia [o projeto] não é a transmissão de técnicas do fazer, mas a descoberta através do fazer, visando à conscientização dos recursos já existentes (...), à relação desta com a matéria-prima e, dentro desse processo, provocar a geração e o resgate da linguagem criativa”25. Algumas exposições saíram deste processo, a exemplo de Argila, um Universo, curada por Celeida Tostes, na Galeria da Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro, em 1987. A mostra apresentava trabalhos de duas artistas da comunidade (D. Henriqueta e D. Augustinha) e alunos da Oficina das Artes do Fogo (Ricardo Ventura, Mariana Canepa, Sueli Lima, Martha Rocha, Amon e Moca, além de Darly Fernandes, oriunda da favela da Paciência e bolsista da EAV-Parque Lage).

Sem levantar bandeiras ideológicas, a pedagogia que Celeida foi construindo no decorrer dos anos 1960 e 1970 primava pela democratização da expressão pela arte de outras camadas sociais e diversos grupos etários; baseava-se em encontros horizontais entre educadora-educanda e educandos-educadores num constante diálogo repleto de rigor, afeto e respeito; não buscava inculcar nos educandos padrões estéticos, mas contribuir para que cada um encontrasse sua linguagem num processo de autorreflexão e experimentação com o barro; procurava gerar uma integração de saberes. Sua prática artística voltou a acontecer de forma mais sistemática a partir do final dos anos 1970 e passou a espelhar esses princípios, em especial no tocante ao aspecto coletivo e não hierárquico, tanto na produção dos trabalhos quanto na sua exposição. Poderíamos citar como exemplos O Muro26 (1982) e Passagem27 (1979) obra mais conceituada da artista que foi apresentada em sua primeira individual com trabalhos de barro, na Galeria Rodrigo Mello Franco de Andrade, na Funarte. A mostra aconteceu em diálogo com a individual de sua aluna Nelly Gutmacher no mesmo espaço. O caráter emancipatório, dialógico e experimental da pedagogia de Celeida Tostes e seu entrelaçamento com sua prática artística segue sendo um dos exemplos mais radicais de educação artística no Brasil.

Celeida Tostes colaborou com projetos públicos de educação emancipadora inovadores que se articulavam fora das escolas de arte. Tostes atuou como professora de esmaltação em metal no Curso de Artes Industriais do Plano para Ensino Complementar no Brasil de Anísio Teixeira, cujo foco era atualizar o conhecimento dos docentes e renovar as estruturas físicas de escolas públicas. O intuito das aulas como as ministradas por Celeida era capacitar os professores em técnicas que seriam repassadas para os alunos como opção de fonte de renda. Ou seja, o programa buscava agir no ensino formal e transferir conhecimento técnico para a subsistência de camadas desfavorecidas da população. No entanto, é importante salientar que a artista brasileira atuou e criou outros projetos pedagógicos que se focavam na profissionalização e no estímulo à cidadania, a exemplo do projeto Chapéu da Mangueira, que empreendeu um resgate cultural a partir da escuta das memórias das moradoras e de seus processos migratórios para o Rio de Janeiro. A questão da democratização da educação, tão cara a Anísio Teixeira, continuará a ser uma constante na prática docente de Celeida Tostes.

Pelos documentos que chegaram até nós, podemos supor que Celeida apresenta uma maneira singular de inventar comunidades artísticas e fomentar o encontro do aluno com sua realidade e expressividade. Sua pedagogia foi estruturada a partir de seu percurso e percepção individuais e direcionava-se ao desenvolvimento expressivo do aluno e seu método buscava uma conexão do aluno com os elementos da natureza, as sensações do corpo e associações com sua ancestralidade, o que era condizente com o seu material de eleição, o barro. Na prática artístico-pedagógica de Celeida o popular residia na desierarquização da matéria para qual dedicou a vida e que até hoje é associada aos estratos sociais mais invisibilizados e na tentativa de entrelaçamento de alunos de origens muito diferentes. Em sua metodologia de ensino da arte, o núcleo reside na não imposição de modelos, mas na aposta no processo e na experimentação.

A arte é um dispositivo de mudanças sociais e a produção de obras de arte não era o cerne principal, pois para Celeida Tostes fazer arte estava além de uma performance individual e da fabricação de objetos. Seu legado aponta para maneiras híbridas, orgânicas, transformativas e emancipadoras de interrelacionar arte, educação e vida. Sua prática esgarça conceitos, desafia a dinâmica do mundo da arte e desloca o pensamento de educadores fundamentais do Século XX para a educação artística.