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Helio Eichbauer

Trabalhar o corpo e estudar como forma de combate

16.05.2022

por Débora Oelsner Lopes

A prática pedagógica foi a oportunidade que Eichbauer encontrou para reduzir a atividade como cenógrafo, se resguardar das adversidades do momento histórico e dar vazão à sua força criativa e poética, junto a seus alunos.

Eichbauer, em aula sobre Mondrian, no jardim da EAV Parque Lage. Cortesia: Acervo Helio Eichbauer.

Formação e produção nos anos 1960 e início dos anos 1970

Helio Eichbauer relata em seu livro Cartas de Marear - impressões de viagem, caminhos da criação e em entrevistas que, após ver a exposição dos trabalhos do cenógrafo tcheco Josef Svoboda [1920-2002], em 1962, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), interrompe o curso de Filosofia que frequentava na Universidade do Brasil para ser aluno do consagrado artista, na República Socialista da Tchecoslováquia, entre 1963 e 1966.

Em 1966, passou um período em Cuba, onde foi membro do Júri do Festival Latino-Americano de Teatro, promovido pela Casa de las Americas e onde trabalhou com o Teatro Estudio, tendo percorrido diversos teatros da ilha, com a montagem de La noche de los asesinos, de Jose Triana.

De volta ao Brasil, depois de seus estudos sobre abstracionismo geométrico em Praga e da passagem por Cuba que lhe devolveu a cor tropical, Helio Eichbauer realizou projetos, como a cenografia do espetáculo O rei da vela, de Oswald de Andrade, em 1967, com José Celso Martinez Corrêa e o Teatro Oficina, marco teatral do momento tropicalista. Entre 1967 e 1971, estabeleceu parceria com o diretor teatral, professor, crítico e cenógrafo Martim Gonçalves (1919-1973)1, o qual, é citado por Eichbauer como o diretor mais brasileiro com o qual trabalhou, por amar o país e por ser profundo conhecedor da cultura brasileira “tão extensa e produtiva” (EICHBAUER, 2006, p.122).

Dentre os oito espetáculos teatrais montados por Gonçalves e Eichbauer2, dois ganham destaque, pelo fato dos artistas terem ministrado cursos de teatro, concomitante às montagens teatrais. Em 1968, a montagem de Salomé, de Oscar Wilde, realizada no MAM-RJ, inaugurou o ciclo de atividades teatrais do Museu e, em paralelo à temporada da peça, Gonçalves e Eichbauer desenvolvem atividade pedagógica no Bloco Escola do MAM. No mesmo ano, montaram no Ateneo de Caracas, na Venezuela, a peça Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, e mais uma vez desenvolveram atividade pedagógica concomitante à montagem teatral. Há ainda pouco material sobre tais cursos, entretanto, é importante destacá-los, pois foram, para Gonçalves, a continuidade — em menor intensidade — de sua prática artístico-pedagógica desenvolvida na Escola de Teatro da Bahia3; e, para Eichbauer, foi o início de sua prática artístico-pedagógica, que depois se desenvolve com características próprias, nos anos 1970, após o falecimento de Gonçalves.

Álbum de Família possibilitou a aplicação do aprendizado obtido com Josef Svoboda sobre o uso de projeção de imagens em movimento na cena teatral — o elenco contracenava entre si e com as projeções. Foi também a continuidade de uma linhagem artística em que teatro e cinema coabitam, a qual Eichbauer se filiava. O trabalho do russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) e dos alemães Erwin Piscator (1893-1966) e Walter Gropius (1883-1969) são exemplos dessa ancestralidade.

Prática pedagógica como vazão à força criativa

Eichbauer e Gonçalves desenvolvem juntos atividade docente na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ), no início dos anos 1970, na então recente Graduação em Cenografia e Indumentária. A EBA-UFRJ ainda funcionava no centro do Rio de Janeiro, onde hoje funciona o Museu Nacional de Belas Artes. Segundo a artista e professora Dalila Santos, aluna deste período, o novo curso diferenciava-se dos demais por afastar-se do academicismo vigente. Embora ainda fosse um trabalho de mesa e prancheta, com desenhos e maquetes feitos a mão, a partir de textos teatrais e estudos sobre história do teatro, Gonçalves e Eichbauer buscavam o trabalho coletivo, sem qualquer autoritarismo dos docentes em relação à turma. (SANTOS, 2020).

Enquanto Eichbauer esteve no exterior, o Brasil sofreu o golpe de 1964 e, com Ato Institucional no5 (AI-5) de 1968, houve o recrudescimento da ditadura militar - período marcado por torturas, assassinatos, desaparecimentos, cerceamento da liberdade de expressão e de criação, cassação de professores e pessoas se exilando do país. Em 1968, o elenco da peça Roda Viva (de Chico Buarque, montada pelo Teatro Oficina), foi agredido pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

No ano de 1973, tem fim a parceria de Eichbauer com Martim Gonçalves, recém falecido4. Ao mesmo tempo, houve cada vez mais impedimentos à liberdade de expressão, sendo exemplar a peça Calabar (de Chico Buarque e Ruy Guerra, com cenários e figurinos de Eichbauer e de Rosa Magalhães) que foi censurada, na véspera da estreia.

Deste modo, a prática pedagógica foi a oportunidade que Eichbauer encontrou para reduzir a atividade como cenógrafo, se resguardar das adversidades do momento histórico e dar vazão à sua força criativa e poética, junto a seus alunos. Em entrevista concedida a Elias Fajardo de Fonseca do jornal O Globo, em 1976, Eichbauer declarou: “Tenho também dado aulas e, atualmente, estou à procura de uma linguagem exata para o teatro que faço ou que me permitem fazer” (FONSECA, 1976).

De acordo com relato de pessoas que estudaram com Eichbauer nos anos 19705, pode-se verificar alguns aspectos particulares de sua atividade artístico-pedagógica como o rigor no tempo e no espaço, como se cada aula fosse a preparação de um ensaio — isto é, Eichbauer chegava antes do horário da aula, para preparar o ambiente — dispor os objetos e livros e organizar o mobiliário da sala de aula. Outra característica era o fato de ser, ao mesmo tempo, libertário e reflexivo — havia total liberdade de expressão/corporal em suas aulas, entretanto, não eram gestos aleatórios ou fortuitos, estavam sempre em diálogo com os textos e autores estudados. As suas aulas eram como uma vivência e a entrada em uma máquina do tempo — reflexão e criação no presente, a partir do diálogo com produções artísticas anteriores, as quais funcionavam como alicerces para a liberdade criativa. Eichbauer era um professor da Modernidade — em seu trabalho convergiam vida e aula, ou seja, ele próprio estava imerso na pesquisa poética e buscava dar vazão a sua força criativa de igual para igual com a turma, diferenciando-se, apenas, por ser o orientador das atividades conjuntas. E, por fim, sua atividade docente é caracterizada pela interdisciplinaridade — música, literatura, artes visuais estavam presentes.

«Aquela sociedade em que vivíamos não era viável; partia-se em defesa de outros modelos mais harmônicos. Estudar era uma forma de combate. O exercício permitia o ingresso no tempo não histórico, illud tempus, e encontrar ali uma fonte pura. O teatro proporciona viajar no espaço-tempo, assim como a literatura, sobretudo a poesia (que é também música). Estudei cenografia, uma arte espacial-temporal, para viajar no tempo. Nossa prancheta, nossos esquadros (escudos de cavaleiros), nossos compassos, nossos escalímetros são engrenagens da Máquina do Tempo».

(Eichbauer, 2013, p. 212)9.

«No momento em que me chamarem para um trabalho decente, faço. [...] entre aceitar um trabalho no qual não vejo sentido e pesquisar com meus alunos, prefiro a busca da obra coletiva. O que eu chamaria de ‘teatro de artista plástico’. Então, não é uma fuga: é uma passagem, uma busca. E eu estou crescendo com ela»

(Eichbauer in Pacheco, O Globo, 1976).

Escola de Belas Artes da UFRJ e Escola Martins Pena: do manual ao corporal

Até 1974, a EBA funcionou no centro do Rio de Janeiro, as salas eram mobiliadas com pranchetas e bancos altos, e o trabalho nas aulas era predominantemente manual, de desenho e maquetes, a partir de textos teatrais. Em 1975, a Escola de Belas Artes é transferida para o campus da Ilha do Fundão, mais distante dos conflitos políticos do centro da cidade. As salas de aula no novo edifício, projetado por Jorge Machado Moreira, eram mais amplas do que as do centro, dando início ao trabalho artístico em maior escala - desenhos murais e uso do corpo. Nas palavras de Eichbauer:

«A EBA deu-me total liberdade: exerci minha missão com entusiasmo e prazer. A sala de aula era um laboratório de artes plásticas, literatura, filosofia, arquitetura e música. Trabalhávamos com o corpo e dançávamos às quartas-feiras mercuriais, quando nos reuníamos para festejar a semana com almoços preparados por todos. O Ágape platônico. Philia. O Programa do curso era o mesmo de Praga, com adaptações à realidade brasileira: uma série de exercícios gráficos, abstracionismo geométrico no plano e no espaço. Telas coletivas, mapas de cidades imaginárias: geologia, sociologia e antropologia do teatro. Estudo de rituais e festas populares. Encontros para ouvir música, leituras de textos e poesia. Pesquisa em bibliotecas públicas e museus. Consultas aos livros raros da biblioteca do museu Dom João VI da Escola de Belas Artes. Construção de maquetes de cartão e madeira, pequenos teatros para exercícios de escala e proporção».

(Eichbauer, 2013, p. 208).

Na atividade docente realizada após a parceria com Martim Gonçalves, houve maior presença da expressão corporal, entretanto os textos teatrais e literários (prosa e verso) não foram abandonados e eram a base da pesquisa e da experimentação artística e poética. Na EBA-UFRJ, foram feitos exercícios a partir de A Tempestade, de Shakespeare; d’A Flauta Mágica, de Mozart; e de Fausto, de Goethe. Também havia exercícios e discussões a partir de textos de Carl Jung e da filosofia chinesa.

«No piso da sala de aula, o desenho mandálico: círculo, quadrado, diagonal e o ponto; o fio de prumo suspenso e o labirinto da Catedral de Chartres. Era um tabuleiro de jogo ritual. Às vezes sessões de I Ching, o Livro das mutações, na tradução do grande sinólogo Richard Wilhelm, prefaciada por Carl Gustav Jung. A leitura do livro O segredo da flor de ouro, outro clássico da filosofia chinesa. Taoismo e alquimia na coordenação do curso de cenografia: romances de formação de Goethe, tratado de cenografia do século XVII, livros de Adolphe Appia e de Edward Gordon Craig – grandes mestres da cenografia moderna da primeira metade do século XX -, aula sobre os artistas construtivistas da vanguarda russa, sobre a escola Bauhaus, o mundo da ópera e do balé, a dança moderna e seus cenógrafos-figurinistas, a grande revolução nas artes cênicas até os anos 1970».

(Eichbauer, 2013, pp. 215-216).
Eichbauer e estudantes na sala de aula da Escola de Belas Artes da UFRJ. Cortesia: Acervo Helio Eichbauer.

Em 1976, Eichbauer foi convidado a lecionar na Escola de Teatro Martins Penna6, localizada no centro do Rio de Janeiro, em um contexto de reformulação do ensino proposta pelo novo diretor Klauss Vianna, em que se priorizava o desenvolvimento individual em lugar da profissionalização em atuação. Cenografia Aplicada e História da Arte era a disciplina ministrada por Helio Eichbauer e por Denise Weller. Segundo relatos de alunos e alunas da época, foram realizados trabalhos a partir de Pretruscha, de Igor Stravinsky e de Scheherazade, de Rimsky Korsakov, com pesquisa histórica e práticas corporais em conjunto.

Escola de Artes Visuais do Parque Lage: intensa vivência corporal (floresta e palacete)

Em 1975, Rubens Gerchman assumiu a direção da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, localizada em um palacete, dentro da Floresta da Tijuca7. As práticas pedagógicas faziam uso de toda parte construída da casa e das áreas do parque: salas de aula; o pátio em torno da piscina; a varanda superior com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, para o morro Dois Irmãos, para a Pedra da Gávea e para o Corcovado; e havia exercícios em contato direto com a natureza, em meio às árvores.

O novo diretor convidou equipe docente alinhada às inovações artísticas do período, sendo Eichbauer responsável pela Oficina do Corpo, depois renomeada para Oficina Pluridimensional:

«Sua atuação como cenógrafo em 13 anos de intensa atividade profissional e sobretudo sua flexibilidade como artista/pesquisador, seu interesse por música, dança, teatro e pintura (artes plásticas), possibilitaram a realização de uma proposta aglutinadora destas diversas manifestações de arte. Lembro-me de Jackson Pollock pintando com o corpo/gesto sobre telas estendidas no chão (action painting), dos calígrafos japoneses, das manifestações do body-art nos anos 70, tentativas de recuperação do equilíbrio mente-corpo, e observo a transformação desta informação em experiência vivida nos trabalhos de criação coletiva dos alunos de Helio Eichbauer»

(Gerchman, 1976, p. 38)12.

A primeira atividade pedagógica de Eichbauer foi um curso de férias, no final de 1975, inspirado no poema sinfônico de Heitor Villa-Lobos, Uirapuru. Professor e toda turma construíram indumentária com a flora do Parque Lage e realizaram uma vivência coletiva, no salão nobre da EAV.

O espaço físico da EAV e a liberdade dada por Gerchman permitiram o florescimento das práticas artístico-pedagógicas, sendo as Conferências-Espetáculo a expressão máxima da aplicação dos ensinamentos obtidos com Josef Svoboda e das referências artísticas no início do século XX, pelo resgate do uso de projeções concomitante às leituras e práticas corporais.

As Conferências-Espetáculo eram como performances ou happenings, em que professor ou professor e alguns alunos representavam papéis e personagens relativos ao tema definido. Aconteciam em um dia específico, com transformação do espaço físico da escola. O primeiro tema, apresentado só por Eichbauer, no salão nobre da EAV, foi Maiakóvski, Meyerhold e a Biomecânica. Um outro tema estudado e apresentado foi Commedia dell’Arte e Bumba Meu Boi — relações arquetípicas — iconografia popular e erudita, em que o pátio em torno da piscina foi usado, em uma apresentação noturno, com projeções de vídeo, luzes de vela e músicos ao vivo.

«Quem tinha visto um professor fantasiado, pintado, dando uma aula sobre arte? Um boneco, um palhaço, um personagem da commedia dell’arte? Somente na Rússia dos anos 1920, na Alemanha da Bauhaus e na boemia excêntrica da Belle Époque; nas récitas musicais, literárias e humorísticas do Salão de Belas Artes de 1913, que levavam multidões para a Escola Nacional de Belas Artes»

(Eichbauer, 2013, p. 222).

A chama perene da prática artístico-pedagógica

A expressão corporal — por ser uma forma artística mais abstrata e, portanto, menos cerceada pela ditadura militar — foi o caminho encontrado por Eichbauer para dar continuidade à sua força criativa, nos difíceis anos 1970. Nos anos 1980, Eichbauer teve breve atuação na Graduação em Cenografia e Indumentária da UNIRIO; e, nos anos 1990, deu Curso livre de Cenografia em Brasília. Entretanto, nos anos 2000, retomou intensa atividade artístico-pedagógica, a partir de curso livre oferecido em sua exposição Helio Eichbauer: 40 anos de cenografia, no Centro Cultural do Correios-RJ, em 2006. Até sua passagem, em 2018, ministrou cursos no Teatro Poeira (2007-2008), no Espaço Tom Jobim (2009-2010, 2014, 2016-2018) e de novo na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (2011-2013, 2014-2015). Realizou alguns exercícios que se assemelhavam com as Conferências-Espetáculo, como o espetáculo Suíte Brasileira, em curso homônimo, no Espaço Tom Jobim, em 2010; e como a leitura dramática de O Tambor de Damasco, de Yukio Mishima, em 2012, em curso na EAV. Por fim, é de se destacar a relação intrínseca da prática profissional e da prática artístico-pedagógica, sendo exemplar o ano de 2013, quando fez a cenografia do Show Abraçaço, de Caetano Veloso, com reproduções de quadros de Kazimir Malevich e, no mesmo ano, ministrou o curso livro O truque e a alma, mesmo nome do livro sobre a vanguarda russa teatral, escrito por Angelo Maria Ripellino.